“Só teremos respostas concretas sobre as consequências do glifosato à saúde a longo prazo”, diz pesquisadora da Fiocruz

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária está com consulta pública* aberta até o dia 6 de junho para avaliar a manutenção ou não do glifosato em agrotóxicos no Brasil. A abertura veio após a conclusão, no final de fevereiro, de análise de mais de dez anos sobre as consequências do uso do componente químico que é o agrotóxico mais utilizado no Brasil e no mundo.

A reavaliação toxicológica concluiu que o glifosato não foi enquadrado como cancerígeno ou outra característica de prejuízo à saúde que o encaixasse nos critérios proibitivos indicados na legislação sobre o assunto. Afirma que ele poderia, portanto, continuar sendo aplicado em lavouras de todo o país. Porém, entidades como a Agência Internacional para Pesquisa sobre Câncer (Iarc), que faz parte da Organização Mundial de Saúde (OMS), apontam que o produto é “provavelmente cancerígeno” para humanos.

O laudo da Anvisa – que contou com 16 pareceres da Agência e outros três pareceres externos – também revela que os trabalhadores rurais e populações que vivem próximas às lavouras são as pessoas que correm mais risco com a aplicação do glifosato no campo, demandando ações para evitar tamanha contaminação.

A engenheira agrônoma, doutora em Recursos Genéticos Vegetais pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e pesquisadora de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) do Mato Grosso do Sul, Fernanda Savicki de Almeida, falou sobre esse resultado, sobre o que a comunidade científica pensa dele e o que será feito a partir da finalização da consulta.

Na Fiocruz, a pesquisadora trabalha nas áreas de biodiversidade e agronegócio, agroecologia e saúde, impacto dos agrotóxicos na saúde coletiva e uso da biodiversidade no SUS.

1. Por que grande parte da comunidade científica e do meio ambiente discorda dessa conclusão da Anvisa?

Fernanda Savicki de Almeida: Precisa ficar claro para a população que a Anvisa não faz suas próprias pesquisas. Ela não faz suas próprias pesquisas de toxicologia, por exemplo, nem faz acordos ou convênios com institutos de pesquisa e universidades. Os resultados são pautados em informações liberadas pela comunidade científica do mundo inteiro. Sabemos que o meio científico não é isento, pois nem sempre as informações liberadas pela ciência são pautadas em uma condição de tentativa de encontrar respostas reais para determinado assunto. A questão é que não sabemos em que informações a Anvisa está se pautando.

Mesmo na esfera pública, muitas pesquisas são financiadas por empresas e têm a colaboração de organismos internacionais que têm interesse no assunto estudado. Isso acaba gerando respostas que não são conclusivas ou que não retratam de fato os resultados que precisam ser apresentados. Há iniciativas da comunidade científica mais idônea que estão a serviço da população e que querem trazer informações mais claras em relação a isso. São da área da saúde e meio ambiente tanto mundial quanto brasileira. Esses grupos independentes têm mostrado dados relevantes em pesquisas com transgênicos, do potencial cancerígeno do glifosato, por exemplo. Infelizmente eles não têm força política suficiente para bater de frente com grandes poderes de conglomerados empresariais da indústria agroquímica farmacêutica. É uma luta meio Davi-Golias.
A Bayer [indústria que produz o glifosato] inclusive admite que colaborou com a Anvisa para

os resultados com dados científicos para que a Agência chegasse à conclusão que chegou, de acordo com uma reportagem do jornal Zero Hora.

Me parece um pouco estranho que a Bayer tenha apresentado dados e colaborado com Anvisa para chegar às conclusões dela. Aí já vemos que coisas nefastas estão acontecendo por trás.

2. A conclusão da Anvisa surpreendeu a todos por uma instituição como essa contrariar estudos internacionais, como o realizado pela OMS. Você considera a Anvisa atualmente um órgão confiável? Há a possibilidade da Anvisa estar sofrendo pressões de algum tipo - do mercado, econômicas, de indústrias por exemplo?

Ao longo dos anos, a Anvisa vem sendo sucateada e perdido a sua importância, muitas vezes tem sido desqualificada pela própria indústria e ainda, em muitos casos, o governo não tem dado apoio suficiente para que os profissionais possam se posicionar contra o que tem acontecido dentro da Agência. O órgão está enfraquecido e com as pressões violentas por parte da indústria ele acaba cedendo, não tem como não ceder contra essas forças contrárias em cima.

Também é preciso levar em conta que pesquisas de impacto na saúde e meio ambiente - diferente das agronômicas, rápidas, que no mais tardar em 10 anos você tem resultados concretos sobre a eficácia de um produto – levam muitos anos para apresentarem conclusões, às vezes nem com 10 ou 20 anos.

O DDT [sigla de diclorodifeniltricloroetano, pesticida], por exemplo, foi proibido no Brasil há poucos anos e até hoje temos essa molécula estável pelo planeta e que ainda causa males de forma cada vez mais danosa. Não temos respostas imediatas. Hoje as moléculas são menos estáveis, menos impactantes, mais biodegradáveis, mas isso não significa que não sejam tóxicas, porque não sabemos sobre o comportamento delas ao longo do tempo, qual é o resultado no desenvolvimento da população. O que conseguimos fazer são testes dos problemas mais agudos, de pele, irritação ocular causado pelo glifosato. Consequências mais imediatas, concretas e visíveis. Não há uma pesquisa que comprove se gera má formação em fetos, por exemplo. É nessas pesquisas de curto prazo que está pautada a decisão da Anvisa.

É óbvio que alguns testes conseguimos em laboratório por tecidos em animais, mas precisamos de um estudo clínico que mostre como isso se comporta no ser humano. Por mais que tenha modelos de saúde se aproximem ao máximo, não temos o mesmo organismo, então as respostas acabam sendo diferentes. Ou seja, não temos respostas de saúde em um prazo que as empresas exigem para a liberação ou não do agrotóxico. O mesmo com o meio ambiente, não sabemos em que medida o glifosato entra no ciclo das chuvas ou quanto vai impactar a ictiofauna [populações de peixes]. Não sabemos como isso entra na teia alimentar, como funciona em um ecossistema. São respostas que só teremos daqui a 20, 30 anos ou mais.

Não conseguimos fazer o vínculo nexo causal agora com os agrotóxicos. Aos poucos estamos conseguindo novos métodos mais sensíveis e exatos que conseguem dar resultados mais claros, mas isso é ao longo de muito tempo.

3. Historicamente, a Anvisa já cometeu falhas nesse sentido, voltou atrás em análises ou sofreu pressões para aprovar o uso de agrotóxicos que podem representar perigo para a saúde?

Ela já teve falhas, como todos os outros órgãos, são humanos e isso acontece, ainda mais com o órgão fragilizado como está. O quantitativo de pessoal lá é muito pequeno, poucas pessoas destacadas para se debruçar sobre essas questões, os profissionais fazem muitas coisas ao mesmo tempo. Difícil conseguir não ter erros. E como vem sofrendo perdas de importância de poder decisório, de tomadas de decisão do governo, a cada mês perdem mais importância. Seus métodos são questionados, obviamente isso fragiliza inclusive a forma como seus servidores lidam com as situações. A pressão do lobby do complexo industrial agroquímico farmacêutico também existe, os laudos são revisados diariamente. Essas pessoas sofrem muito. E ainda por cima os que são servidores de carreira acabam sofrendo porque pessoas de cargos de confiança não necessariamente têm a expertise necessária para estar à frente desses cargos, são colocadas lá por questões políticas.

É para servir a população que existe o serviço público, mas vemos uma série de problemas políticos por trás de decisões que não deveriam ser políticas. E isso não é só na Anvisa, infelizmente.

5. Com a conclusão da Anvisa, quais os próximos passos? O que pode ser feito para contestar essa análise?

Continuar fazendo as pesquisas com ética e cuidado, ter robustez para enfrentar o lobby da indústria. Precisamos nos colocar contra a decisão de manter o registro do glifosato, manter as discussões sobre isso, o debate aberto com a população. A mídia também tem o importante papel de continuar questionando, mantendo as pessoas antenadas com novas informações.  

Minha responsabilidade como pesquisadora, assim como outros profissionais, é manter a discussão. Pautar isso em diversos setores, nas universidades, escolas, sempre que surgir oportunidade, para que a população tenha controle social sobre isso. Também estar atento às leis e projetos que passam pelas comissões especiais, continuar o debate sobre a PL do Veneno [Projeto de Lei 6299/02], para não deixar passar. Independente das resoluções da Anvisa, isso sempre tem que ser pauta, com todos os agrotóxicos e produtos químicos que estão sendo liberados.

*Os interessados em participar da consulta devem conhecer a proposta da Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) e enviar contribuições através de formulário. Após a consulta, a Anvisa vai analisar os formulários e, se necessário, vai promover debates com órgãos, entidades e com os que manifestaram interesse pelo assunto.

 

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